ALQUIMIA: TRANSFORMAR MISTURANDO
“Num buraco de pedra, um pouco escuro, prendem-se um velho galo e uma velha galinha... Eles se acoplam e dos ovos, que se farão chocar por sapos, sairão basiliscos (répteis) em forma de frangos com rabo de dragão. Ao fim de seis meses, queimam-se esses animais triturando suas cinzas com um terço do sangue proveniente de um homem ruivo. Enfim, mistura-se tudo a um vinagre bem forte, nem recipiente apropriado. Derrama-se essa mistura sobre os dois lados de uma placa de cobre que, após ter sido aquecida até arder, é novamente mergulhada na mistura até que tome o peso e cor de ouro...”
Esta receita foi dada pelo padre Teófilo, no século X, no
seu “Schedula Diversarm Artium” ('Fichário das Diversas Artes'). É uma das muitas
fórmulas que, desde a antiguidade, foram elaboradas por alquimistas para
transformar outros metais em ouro.
Misturar para
transformar
A meta principal da alquimia (do árabe, “al” e do grego,
“kymeia: fusão, mistura) foi a transformação de substâncias por processos
químicos e as tentativas de transmutação dos metais. Encerrados em seus
sombrios laboratórios, os alquimistas praticavam uma “ciência” que pretendia
concretizar os anseios fundamentais do homem:
“Os que se encontram na miséria, não se desesperem, porque
conseguiremos, um dia, transformar os metais mais comuns em ouro; nem esmoreçam
os velhos e doentes: em breve, bastará um pouco do nosso “elixir da vida longa”
para lhes devolver a juventude e o vigor. Tudo isso será possível, quando
descobrirmos a “pedra filosofal”, esta substância miraculosa capaz de provocar
toda sorte de transformação”.
Com estas crenças e com suas experiências os alquimistas
abriram os caminhos que, com o passar do tempo, conduziram à Ciência dos nossos
dias.
Uma história de
sonhos
"Alchimia - Imagem de 'Alchimia', a personificação da Alquimia". Xilogravura publicada por Leonhard Thurneysser em 1574. Thurneysser foi aluno de 'Paracelso' (ler mais abaixo no texto).
"Alchimia - Imagem de 'Alchimia', a personificação da Alquimia". Xilogravura publicada por Leonhard Thurneysser em 1574. Thurneysser foi aluno de 'Paracelso' (ler mais abaixo no texto).
A alquimia foi praticada desde a mais remota antiguidade.
Com efeito, a transformação de substâncias por processos químicos já fazia
parte dos conhecimentos legados pelas civilizações arcaicas da China e Índia
aos impérios persa e egípcio.
Enquanto os egípcios a utilizaram para efeitos práticos como
curtir couro, preparar ligas de metais comuns, fabricar corantes e cosméticos,
os persas se interessaram por esse novo tipo de conhecimento e o difundiram
entre os povos que conquistaram. Através deles chegou a alquimia à Grécia, onde
foi incorporada aos conhecimentos teóricos dos gregos sobre os mistérios da
vida. Contudo, o grande centro alquimista da antiguidade foi a cidade de
Alexandria, no Egito. Nela se deu a fusão entre as práticas egípcias e a teoria
grega, mais tarde desenvolvida pelos árabes que dominaram a cidade em 642 d.c.
Dos árabes conquistadores nasceu um dos maiores alquimistas de todos os tempos
– Jabir ibn Hayyan (721-813 d.c.), conhecido na Europa com o nome de Geber.
Representação européia de Jabir ibn Hayyan, mais conhecido como Geber |
No início do século VIII, quando os árabes chegaram à
Espanha, levaram consigo toda a sua sabedoria. E, através das universidades
mouras de Barcelona e Toledo, a alquimia foi difundida por toda a Europa, onde
alcançou um desenvolvimento sem precedentes. Tanto assim, que os séculos XV e
XVI foram a “idade de ouro” dessa atividade precursora da Ciência. Muitos
estudiosos se dedicaram à sua prática, mas ela também foi um campo aberto para
charlatães e curandeiros que iludiam os ingênuos com promessas de fortuna,
saúde e vida eterna. Até que a lucidez e objetividade dos pensadores da
Renascença começaram a duvidar dos elixires e da decantada “pedra filosofal”. Pois,
na realidade, ela jamais fora encontrada e, portanto, não se conseguira
transformar nenhum metal em ouro. Entretanto, dessas pesquisas malogradas a
humanidade pôde usufruir muitos benefícios.
Esboço do equipamento de fabricação de ouro de Cleópatra
Essências e
influências
A teoria de Aristóteles (filósofo grego do século IV a.c.) de que as substâncias eram compostas dos quatro elementos fundamentais (terra, água, ar e fogo) foi a idéia básica da alquimia. Assim, uma substância se distingue da outra pelas diferentes proporções que contém desses elementos ou outros introduzidos mais tarde.
"O Círculo Quadrado": um Símbolo Alquímico do século XVII que ilustra a interação dos quatro elementos da matéria (água, fogo, terra e ar) que simbolizam a pedra filosofal
Para Geber, todos os metais seriam formados apenas de
mercúrio e enxofre, sendo que desses elementos se deveriam extrair as
“essências” que transformariam todo metal em “ouro mais puro que o das minas”. Admitindo
que todas as substâncias têm uma única raiz, parecia ser possível – para os
alquimistas – transformar os corpos, entre os quais os metais, em ouro. Este é
o símbolo do sol, da luz, do poder criativo, da revelação divina. O ouro é um
sinal concreto da força que serve para comprar a glória e a felicidade neste
mundo.
A busca por um solvente universal – o “alkahest” – foi
também uma das maiores preocupações dos alquimistas, embora eles não soubessem
responder em que recipiente poderiam colocar uma substância que dissolveria
tudo. Por outro lado, acreditando na influência dos astros sobre os homens,
admitiam que eles também influenciariam e transformariam os metais. Por isso, a
cada metal fazia corresponder um astro: ouro – Sol; prata – Lua; cobre –
Vênus; chumbo – Saturno; ferro – Marte; estanho – Júpiter; mercúrio – Mercúrio.
Estas e outras crenças guiaram os alquimistas, através dos
séculos, na esperança de atingir – em seus laboratórios – os segredos
fundamentais do Universo.
Fornalhas e Fórmulas
Desenho de uma torre de atanor. O atanor, também chamado 'forno cósmico', era um forno utilizado na alquimia para fornecer calor para a digestão alquímica. Era considerado o forno filosófico, o qual deveria permitir a obtenção da pedra filosofal (lapis philosophorum). (Wikipedia)
Desenho de uma torre de atanor. O atanor, também chamado 'forno cósmico', era um forno utilizado na alquimia para fornecer calor para a digestão alquímica. Era considerado o forno filosófico, o qual deveria permitir a obtenção da pedra filosofal (lapis philosophorum). (Wikipedia)
Na Idade Média, o laboratório de um alquimista era um
vastíssimo salão muito escuro com várias mesas cobertas de tubos, filtros,
funis, retortas, ampolas de vários tamanhos. No centro da sala havia uma ampla
estufa atulhada de recipientes de formatos esquisitos, cheios de substâncias
malcheirosas. Nas paredes, várias estantes com numerosos frascos hermeticamente
fechados. Seus rótulos indicavam os nomes das substâncias tão bem guardadas:
“Lua vermelha”, “Aquiles de cobre”, “Asterita”...
Ilustração antiga de um atanor
A peça mais importante desse estranho equipamento seria
provavelmente a fornalha ou caldeira, onde o alquimista colocava o cadinho no
qual queimava ou “calcinava” os minérios. Na fornalha – chamada atanor – as substâncias eram aquecidas
utilizando-se três tipos de calor: o fogo
úmido (ou banho –maria), o fogo
sobrenatural (obtido adicionando-se à chama um ácido qualquer) e o fogo natural.
A fornalha também servia para destilação de líquidos que
ferviam em vasilhas chamadas alambiques, com detalhes engenhosos e cujos
cabeçotes (“kerotakis”) se dava a condensação do vapor. A preciosa substância
destilada caía gota a gota num recipiente – o pelicano – formado por dois tubos
que depois se unem, onde os líquidos destilados circulavam. Nestes aparelhos
muitas experiências foram feitas na esperança de se conseguir a sonhada
transformação dos metais em ouro. Considerava-se que o primeiro estágio dessa
transformação era a obtenção de uma substância de cor preta, que conseguiam
misturando chumbo e cobre no “kerotakis” e adicionando enxofre para produzir
vapor. Teoricamente, a coloração preta ou “melanosis” da substância deveria ser
seguida da coloração branca ou “leukosis”, depois “xantosis”, ou coloração
amarela e, num estágio muito avançado, de ”iosis” ou coloração roxa. Um bom
alquimista deveria usar também o pilão para triturar os minérios e reduzi-los a
pó. Além de toda a aparelhagem, sobressaem os grossos livros,
empilhados a esmo, que numa “esotérica” e simbólica linguagem registravam as
fórmulas e receitas que custaram aos alquimistas tantas meditações e
experiências.
“Apenas os idiotas
pensam que a alquimia é o conhecimento de como obter ouro. O objetivo da
alquimia é procurar descobrir novos remédios”. Esta opinião começou a ganhar
terreno na Renascença, quando viveu o médico suíço Teophrastus Bombastus von
Hoheiheim (1493-1541), mais conhecido pelo nome de Paracelso. Desenvolvendo uma
alquimia prática, Paracelso procurava instruir-se não só nas universidades, mas
também em seus passeios pelo campo entre lavradores, pastores, parteiras. Seu
grande mérito foi o de ter colocado a alquimia a serviço da cura dos doentes,
elaborando a iatroquímica (do grego, “iatro”, que significa médico).
"Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (Paracelso)". Retrato de 1538 feito pelo artista, matemático e cartógrafo alemão Augustin Hirschvogel (1503 - 1553). Paracelso foi um médico, alquimista, físico, astrólogo e ocultista suíço-alemão. A ele também é creditado a criação do nome do elemento zinco, chamando-o de 'zincum'. Seu pseudônimo significa "superior a Celso (médico romano)". (Wikipedia)
Naquela época,
constituiu uma grande inovação o emprego de substâncias minerais na preparação
de medicamentos. E a investigação das propriedades químicas dos minérios,
feitas por Paracelso, resultou em novos e mais ativos remédios. Sob sua
influência, muitos alquimistas abandonaram definitivamente a busca da “pedra
filosofal” e se dedicaram à preparação de drogas, pomadas, corantes, xaropes,
perfumes.
Embora até o início do século XVIII não se tenha feito um
estudo sistematizado da composição e propriedade dos corpos, nas numerosas
experiências alquímicas foram descobertas diversas substâncias e compostos.
No século I, Dioscórides, médico grego, descobriu o meio de
preparar o acetato de chumbo e o vitríolo verde. Os alquimistas árabes
descobriram a água-régia, o nitrato de prata, as propriedades químicas do
salitre. Entre eles, salientou-se Geber, que por volta de 750 d.c. já contava
com uma ciência avançada de fusão de metais, obtendo o anidrido arsênico e o
ácido nítrico. Atribui-se ao monge dominicano Alberto Magno (1193-1280) a
produção do arsênio derivado do anidrido arsênico. O monge alquimista Basílio
Valentino, que viveu na Renascença, descobriu o antimônio e o ácido clorídrico.
Por volta de 1616, Andréas Libavius produziu o acetato de chumbo, o ácido
canfórico e o sulfato de amônio. Também os processos alquímicos de destilação,
filtração e sublimação, bem como suas aparelhagens, já haviam sido descritos e
utilizados pelos alquimistas árabes.
Dioscórides recebe a mandrágora da ninfa Epione. Biblioteca Nacional Austríaca, em Viena. Pedânio Dioscórides foi um autor greco-romano, considerado o fundador da farmacognosia através da sua obra "De materia medica" ('Sobre Material Médico', em português), a principal fonte de informação sobre drogas medicinais desde o século I até ao século XVIII.
"De materia medica" ('Sobre Material Médico'). Capa de uma versão de 1554, em Lião, França. 'De Materia Medica' é uma enciclopédia e farmacopeia sobre ervas e quais os medicamentos que se podem dali obter. A obra em cinco volumes descreve vários elementos conhecidos por serem eficazes, onde se inclui: aconitum, aloe, Citrullus colocynthis, Colchicum, meimendro, ópio e Scilla. Ao todo, são referidas cerca de 600 plantas, alguns animais e substâncias minerais, e cerca de 1000 medicamentos produzidos a partir deles. (Wikipedia)
O médico e químico alemão Andreas Libau (nome de nascença) ou Andréas Libavius (1555 - 1616)
Em 1597, Andreas Libavuis escreveu o primeiro livro sistemático de química, "Alchemia" (foto acima), que incluía instruções para a preparação de diversos ácidos fortes. Algumas de suas obras foram publicadas sob o pseudônimo de Basilius de Varna.
"De materia medica" ('Sobre Material Médico'). Capa de uma versão de 1554, em Lião, França. 'De Materia Medica' é uma enciclopédia e farmacopeia sobre ervas e quais os medicamentos que se podem dali obter. A obra em cinco volumes descreve vários elementos conhecidos por serem eficazes, onde se inclui: aconitum, aloe, Citrullus colocynthis, Colchicum, meimendro, ópio e Scilla. Ao todo, são referidas cerca de 600 plantas, alguns animais e substâncias minerais, e cerca de 1000 medicamentos produzidos a partir deles. (Wikipedia)
O médico e químico alemão Andreas Libau (nome de nascença) ou Andréas Libavius (1555 - 1616)
Em 1597, Andreas Libavuis escreveu o primeiro livro sistemático de química, "Alchemia" (foto acima), que incluía instruções para a preparação de diversos ácidos fortes. Algumas de suas obras foram publicadas sob o pseudônimo de Basilius de Varna.
Nos laboratórios fantásticos, com fórmulas enigmáticas,
metais e líquidos de cores e odores estranhos, os alquimistas medievais eram
homens que pareciam ter assinado um pacto com o Diabo. Por isso foram muitas vezes
perseguidos e condenados à morte, acusados de feitiçaria. No entanto, dessa
paixão, muitas vezes paga com a própria vida, surgiu o espírito de pesquisa que
caracteriza a ciência atual. Ela certamente teria perdido tempo, não fossem os
sonhos e crenças dos alquimistas.
Fonte original do texto: Enciclopédia Novo Conhecer Vol. 08. Editora Abril Cultural, 1977
Ilustração retirada do tratado alquímico "Atalanta Fugiens", de autoria de Michael Maier (1568-1622)
Comentários
Postar um comentário