ODE AO PECADO: GULA

"Boca do Inferno". Matthäus Küsel (1629-1681), baseado na arte original de Lodovico Ottavio Burnacini. Datada de 1668.

"Inferno, Lúcifer - O Juízo Final (detalhe)". Taddeo di Bartolo, 1396.

“Entre pela boca no Inferno, e entrarás nas entranhas de Satã...”


GULA: (Do latim Gula, ‘esôfago’, ‘garganta’.) 1. Excesso na comida e na bebida (glutonaria) 2. Apego excessivo a boas iguarias (gulodice). 

A história do surgimento do que conhecemos atualmente como os sete pecados capitais não teve suas origens dentro dos ditames da bíblia como muitos acreditam. Estes nasceram, na verdade, a partir dos interesses éticos da igreja ortodoxa. Os primeiros pensamentos a darem origem aos sete pecados como os conhecemos atualmente teriam tido início no ano de 375 e.v., quando um monge cristão chamado Evagrivs Ponticvs (Evágrio do Ponto) fugiu das tentações da cidade romana de Constantinopla e se enclausurou num monastério no deserto egípcio. Durante seu período de isolamento, começou a catalogar seus pensamentos no monastério. Evagrio começou a listar as tentações e, no final, criou uma lista que continha, em sua ótica, os oito pecados mais aterradores, estes sendo: Gula, Luxúria, Preguiça, Avareza, Ira, Soberba, Vaidade e Tristeza.

E foi somente por volta do ano 590 e.v. que a lista passou de oito para os sete pecados capitais como conhecemos hoje, através do reformador católico papa Gregório, que retirou a vaidade e a tristeza da lista e adicionou a inveja, ficando a lista desta forma: Gula, Inveja, Ira, Soberba, Avareza, Luxúria e Preguiça, divulgando-a assim ao mundo cristão da época. E um dos pecados mais paradoxais entre eles é a Gula, o ato de comer e beber excessivamente, de forma desregrada.

As primeiras referências ao pecado da Gula remetem à Idade da Pedra Lascada, na qual as mulheres eram reproduzidas em esculturas frequentemente de forma corpulenta, com ventres e quadris volumosos, seios grandes, cabeças que se juntavam ao corpo, entre outros atributos. Tudo com a finalidade de retratar riqueza, fertilidade e uma forma de cultuar o grande consumo de comida. Alguns exemplos de tais esculturas são a Vênus de Savinhano e a Vênus de Willendorf.

Escultura de madeira de Vênus of Willendorf 

Mas este pecado de fato nasceu durante a era do Império Romano, com o surgimento da tradição greco-romana dos vícios e virtudes. Embora os gregos idolatrassem o corpo humano em forma e tonificado, como fica evidente em várias de seus monumentos e retratados em pinturas, estes também se viam entregues aos prazeres da gula com seus refinados banquetes. Uma variedade de pratos exóticos e tentadores surgiu durante a ascensão do Império Romano. A elite romana frequentemente realizava imensos banquetes com incomensuráveis quantidades de comidas exóticas e vinho, banquetes esses que eram interrompidos com habituais idas ao “Vomitorium”. Existem dúvidas sobre o que de fato seria o vomitorium: os historiadores afirmam que era um saída do anfiteatro para onde as pessoas eram empurradas e expulsas do lugar; mas algum, ou alguns escritores anônimos afirmam que o vomitorium seria um lugar para que os gulosos pudessem ir para vomitar e purgar, para abrir mais espaço para comida e bebida e voltar a se empanturrar e se embriagar. Há referências de que faziam isso colocando uma pena na garganta para induzir o vômito, o famoso “dedo na goela”, ou então esperar que o próprio corpo rejeitasse toda aquela quantidade enorme de comida e bebida. E sempre havia escravos para limpar os comensais para que os mesmos pudessem voltar a comer e beber.

"La porte de l'Enfer ('A Porta do Inferno')". Fernando Botero, 1973


Já o emergente cristianismo atacava de forma voraz o pecado da gula, mencionando que os gulosos “serviam Satã numa bandeja de prata”. Isso fica bem claro no suposto MITO (nada mais que MITO) sobre a tentação de cristo no deserto da Judéia, onde ele teria supostamente jejuado por 40 dias e 40 noites resistindo a todas as tentações de Satã, e quando este partira os anjos teriam trazido algum sustento a jesus (mateus 4:1-11, marcos 1:12,13 e lucas 4:1-13). Portanto, a primeira tentação de cristo foi a Gula, como fica claro quando Satã diz: “transforme esses pedras em pães e encha sua barriga”, e ele supostamente recusa.

No século V e.v., o teólogo cristão Agostinho de Hipona (conhecido como santo agostinho) pregava a abstinência em todas as suas formas, pois acreditava firmemente que somente o fato de gostar de comida seria uma ofensa a deus. Algo que chega a ser bizarro, pois, se assim fosse, seria como se esse deus criasse um pecado impossível de não ser praticado, pois não se vive sem comer e sem beber. Como em casos mais extremos de jejuns, greve de fome e regurgitação forçada de alimentos devido a distúrbios alimentares podem causar as mais diversas doenças como anorexia e bulimia, e em muitos casos pode-se levar até a Morte. E anterior a isso, no século IV, o movimento monástico cristão ocidental emergia através de monges que se enclausuravam em mosteiros negando todo tipo de gratificação ao corpo, baseados no regime de Benedito, o mouro (ou são benedito, que fizera votos de pobreza, obediência, castidade, caminhava descalço pelas ruas e dormia no chão sem cobertas). Foi nessa época que deu-se início aos jejuns, não comer carne nas sextas-feiras, beber certa quantidade de vinho, entre outras formas de abstenção alimentar.

O pontíficie Gregório o grande, o mesmo que criou a lista dos sete pecados capitais, também dera uma atenção maior à Gula, listando cinco maneiras específicas de se cometer tal pecado, que seriam:

- Comer exageradamente, a forma de Gula mais conhecida pois, segundo Gregório, seria como roubar dos pobres e famintos;
- Comer fora de hora, pois havia horários específicos para comer;
- Não se podiam fazer lanches;
- Exigir que sua comida fosse preparada de uma maneira específica, que fosse preparada “daquele jeitinho”, pois isso seria dar importância demais à comida;
- O pecado também era medido pelo seu grau de apetite, quando você pensa em comida o tempo todo.

Para engrossar as fileiras dos detratores da Gula, um frei italiano chamado Tomás de Aquilo pregava que o pecado serviria como uma porta de entrada para os demais pecados, como a ganância (você nunca está satisfeito com o que há para consumir e com a quantidade; passar a roubar não por necessidade mas para saciar o vício do glutão, como roubar alimentos em mercados ou dinheiro para pagar pelo objeto de desejo, ou como um alcoólatra sem-teto que tenta roubar uma adega) e a preguiça (sempre que comemos demais, ficamos indispostos por algum tempo, ou levando a ciclos vegetativos do tipo “comer, beber e dormir”).


MISERICORDIVM


Mesmo com todas as regras rígidas dentro dos mosteiros na Idade Média, dentro de alguns mosteiros havia um cômodo especial chamado “misericordivm” (latim para misericórdia). Eles diziam que este cômodo não fazia parte do mosteiro, e seria uma espécie de “embaixada” para o mundo exterior. Então, ao adentrar este peculiar recinto, os monges se empanturravam de comida e bebiam água e também vinho até a embriaguez.


PARÁBOLA SOBRE A GULA – LENDA MEDIEVAL DE JOÃO DE BEVERLY

Antes de iniciar o texto, aviso que o mesmo não possui intenção de passar qualquer tipo de ensinamento moralista hipócrita, e sim apenas mostrar como os ditos pecados se interligam um ao outro por meio de diferentes eventos.
Diz a lenda que João de Beverly fez um acordo com o Diabo que o obrigou a escolher entre três delitos: a gula, o estupro e o assassinato. Acreditando que a Gula seria um delito menor, João escolheu a Gula em forma de bebedeira. Sendo assim, se embebedou e voltou cambaleante para casa. Mas, ao chegar em casa bêbado e com a visão turva pela embriaguez, escolheu o quarto errado e viu uma mulher deitada na cama que acreditava ser sua. Então, ele vai até a mulher e a violenta, sem perceber que era sua própria mãe. Seu pai presencia a cena e tenta intervir, mas quando se sente ameaçado, João assassina seu pai com um punhal. Ou seja, através da Gula em forma de embriaguez alcoólica, ele cometeu outros dois pecados, sendo estes o incesto e o estupro (Luxúria), e também o assassinato (Ira).


"Glutonia". Arte de Gail Potocki para sua série "Os Sete Pecados Mortais"

As Sete virtudes celestiais

Por volta do ano 1.200 d.c, alguns teólogos cristãos estavam determinados a livrar a sociedade dos sete pecados capitais; entre eles Prudêncio (Aurélio Clemente Prudêncio, 348 - 410), que foi um poeta romano cristão nascido na província romana da Hispânia Tarraconense. E para esse fim, ele criou o poema Psychomachia, intitulando a batalha das virtudes e vícios, sendo a temperança o oposto da Gula, que é a prática da moderação e abstenção. Giovanni di Pietro di Bernardone (são francisco de assis), um frei católico italiano fundador da ordem mendicante, elaborou um método para conter seus impulsos alimentares à mesa: diferentemente dos monges monásticos, que viviam enclausurados em seus monastérios, os freis saíam pregando contra a heresia peregrinando pelo interior. Assim, muitas famílias ofereciam comida e um lugar para que pudessem dormir. Assim, eles não recusavam os alimentos que lhes eram servidos, e geralmente eram refeições mais substanciosas do que as servidas nos monastérios devido às suas regras rígidas (pois seria uma desfeita para com os donos da casa recusar comida, remetendo assim ao pecado do Orgulho). Mas, segundo o método do frei, eles sempre espalhavam cinzas sobre a comida quando as pessoas que os abrigavam não estivessem olhando, fazendo assim com que seu apetite diminuísse consideravelmente.
As demais virtudes celestiais que se opõem aos demais pecados capitais segundo Prudêncio são:

castidade (latim: castitas) — o oposto da Luxúria (do latim Luxuria);
caridade (latim: caritas) — o oposto da Avareza (do latim Avaritia);
diligência (latim: industria) — o oposto da Preguiça (do latim Acedia);
paciência (latim: patientia) — o oposto da Ira (do latim Irae);
bondade (latim: benevolentia) — o oposto da Inveja (do latim Invidia);
humildade (latim: humilitas) — o oposto da Vaidade / Soberba (do latim Superbia).





A GULA NA VISÃO DE DANTE ALIGHIERI

"Inferno de Dante". Antonio Zatta



“No terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco, florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum”. (“A Divina Comédia” – Canto VI. Dante Alighieri (entre 22 de maio e 13 de junho de 1265 - 13 ou 14 de setembro de 1321)).


"As Almas dos Glutões - Canto 23". Arte de Gustave Doré para "A Divina Comédia"


Baseado nesta visão, Dante tinha a intenção de utilizar o ambiente pútrido e fétido, e infestado de poças enlameadas e fedorentas para refletir o que os pecadores amantes da Gula fizeram com seu próprio corpo em vida, seja pelo excesso de comida, bebida ou ambos. Os desencarnados são mencionados estando atolados em pilhas de sujeira, talvez refletindo toda a imundice expurgada de seu próprio corpo debilitado por seus excessos. Apenas mencionando, toda essa visão de Dante sobre o Inferno, o terceiro e os demais círculos vieram tão somente de sua imaginação e de sua pena, mas que muito influenciou a visão hedionda do Inferno como temos em mente nos dias atuais. Isso se deve também às ilustrações aterradoras do ilustrador francês Paul Gustave Doré (Estrasburgo, 6 de janeiro 1832 — Paris, 23 de janeiro de 1883), que fez as ilustrações da Divina Comédia entre os anos de 1861 e 68.

Essa visão do Inferno era frequentemente exacerbada por artistas da Idade Média, que pintavam quadros e templos com ilustrações retratando os infelizes destinos dos glutões no Inferno, como na pintura italiana O Julgamento Final, do século XV (artista desconhecido, e não se refere à famosa obra homônima feita por Michelangelo). Era também uma estratégia visual da época muito utilizada pelo clero para refrear os impulsos gulosos dos povos, geralmente retratando demônios perversos atormentando e atentando os “pecadores” exibindo corpos tanto esquálidos quanto morbidamente obesos com mesas fartas de comida e de álcool. Alguns artistas se destacaram neste meio, com ilustrações extremamente impactantes e medonhas que alimentavam o imaginário sobre o Inferno dos povos da época, sendo um dos mais conhecidos o artista e gravador holandês Hieronymus Bosch (cerca de 1450 - 9 de Agosto de 1516), entre outros artistas obscuros da época. Inclusive, muitas hordas pertencentes ao círculo do Metal Extremo utilizam os trabalhos de ambos os artistas e outros artistas dessa época nas capas e encartes de seus trabalhos.


As Sagradas Anoréxicas 

"Catarina de Siena sitiada por Demônios". Obra de meados de 1.500. Autor desconhecido. 


Algumas vezes, a temperança era levada a níveis extremos. Como exemplo, haviam mulheres que são chamadas pelos historiadores como “sagradas anoréxicas”, estas sendo: Catarina de Siena, Clara de Assis e Verônica. Essas mulheres passavam fome em nome de deus. Sabe-se que a inanição pode vir a causar alucinações, e acredita-se que esta seja uma das causas pelas quais elas se recusavam a comer, pois esta seria uma forma de se aproximar de deus através de tais alucinações. Mas também era uma forma de manter a abstenção e resistir à tentação da Gula.

Em 1.364, Catarina de Siena ainda adolescente abdicou de quaisquer espécies de alimentos; segundo consta, conta-se que ela usava um graveto para induzir o vômito para assim se manter pura. Esse tipo de comportamento remete aos comportamentos ligados aos distúrbios alimentares atuais, como a anorexia e a bulimia, como as modelos dos tempos atuais que se sujeitam à dietas bizarras para manter o corpo na forma que desejam.



A EVOLUÇÃO DO PECADO DA GULA NA RENASCENÇA 

"Glutonaria". Georg Emanuel Opiz Der Völler, 1804



Ao final da Idade Média e início da Renascença, houve uma mudança de visão significativa em relação ao pecado Gula. Antes rechaçado de todas as formas pelo cristianismo, na Renascença ela se tornou um símbolo de poder e status. Um nobre aristocrata dessa época vestia-se com as melhores roupas, habitavam as mais belas casas, e a mesa da nobreza sempre estava repleta das melhores refeições e das melhores bebidas, com quantidades de comidas e bebidas nababescas servidas nas mais finas e sofisticadas baixelas de porcelana. Essa era a imagem que a realeza elitista da época deveria passar para diferenciar-se dos camponeses.

Assim, a visão da Gula muda drasticamente nessa época. Alguns nobres de destaque (até mesmo dentro do clero) dessa época fizeram da Gula seu modo de viver e morrer. Vejamos alguns deles:

"Os Sete Pecados Capitais - Gula". Jacques Callot 

- O Rei João da Inglaterra, também conhecido como João Sem-Terra, que morreu em 1216 de disenteria enquanto fazia campanha no leste da Inglaterra, e sobre ele foi escrito após sua morte: “A sua doença foi piorada por sua Gula perniciosa”;

- O Rei Eduardo IV morreu de repente de causa desconhecida, mas devido ao seu apetite voraz, a culpa foi colocada na Gula. Diz ainda a lenda que, após uma tentativa de traição de seu próprio irmão, o Duque de Clarence em 1478, Eduardo mandou executar Clarence por afogamento dentro de um barril de vinho;

- Luís XIV também foi talvez o mais famoso glutão de sua época. Também conhecido como Luís, o Grande ou O Rei Sol, foi o Rei da França e Navarra de 1643 até sua morte. Seu reinado de 72 anos e 110 dias é o mais longo da história europeia e o segundo maior da história. E como tal, fazia questão de viver de acordo com os padrões da realeza, servindo os pratos e os vinhos mais finos, com sua mesa frequentemente farta. Dizia-se que seu estômago era treês vezes maior do que o dos homens de sua época. Ele engordou muito e veio a ter problemas relacionados aos excessos com comida e bebida. Luís XIV morreu em 1 de Setembro de 1715 de gangrena, poucos dias antes de seu septuagésimo sétimo aniversário e com 72 anos e 110 dias de reinado - o mais longo reinado e governo do mundo ocidental. Seu corpo foi sepultado na basílica de Saint-Denis, em Paris.

- Henrique VIII (28 de junho de 1491 – 28 de janeiro de 1547) foi o Rei da Inglaterra de 1509 até sua morte. Também foi Lorde e depois Rei da Irlanda. Henrique foi o segundo monarca inglês da Casa de Tudor, sucedendo a seu pai Henrique VII. Henrique também é conhecido como o fundador da Igreja Anglicana. Henrique se tornou obeso posteriormente em sua vida. Tinha uma medida de cintura de 140 cm e precisava se mover com a ajuda de invenções mecânicas. Era coberto por furúnculos cheios de pus e possivelmente sofria de gota. Sua obesidade e outros problemas médicos podem ser traçados ao acidente de justa que sofreu em 1536, em que teve um ferimento na perna. O acidente reabriu e agravou um ferimento anterior que havia tido anos antes, a ponto de seus médicos encontrarem dificuldades em tratá-lo. O ferimento infeccionou pelo restante de sua vida até ulcerar, algo que o impedia de manter o mesmo nível de atividade que costumava ter. Acredita-se que o acidente tenha sido a causa das mudanças de humor de Henrique, que podem ter tido grande efeito em sua personalidade e temperamento. A obesidade de Henrique acelerou sua morte aos 55 anos de idade, em 28 de Janeiro de 1547, no Palácio de Whitehall, naquele que teria sido o nonagésimo aniversário de seu pai. Suas supostas últimas palavras foram: "Monges! Monges! Monges!", talvez uma referência aos monges que ele fez serem despejados na Dissolução dos Mosteiros. Seu caixão foi velado no Mosteiro de Sião, no caminho para a Capela de São Jorge, Castelo de Windsor.


Ainda que o cristianismo já tivesse estabelecido tabus religiosos e dietéticos em relação à Gula, incluindo uma lei na qual se proíbe comer carne às sextas-feiras, na Renascença muitos aristocratas conseguiam de alguma forma “burlar” esses tabus. Por exemplo: se estivessem na época da quaresma, período durante o qual é proibido consumir carne, frequentemente os nobres contratavam “chefs” especializados em preparar os alimentos de uma forma mais “artística”. Assim, tais chefs poderiam preparar por exemplo, um peixe com uma aparência de rosbife, e isso se tornou uma prática corriqueira na época entre os nobres.

Ainda assim, sabia-se que tais excessos poderiam acarretar os mais diversos tipos de doenças, tais como a gota, indigestão e doenças cardíacas; assim como a bebedeira em excesso poderia levar à cirrose hepática, gastrite, úlceras, etc.

Os cristãos habitualmente oravam e jejuavam como penitência por conta do pecado da Gula; uma dessas formas de penitência é a época da quaresma, que celebra os 40 dias e noites que jesus supostamente jejuou no deserto da Judéia. Mas, anteriormente a isso, eles ironicamente celebram o carnaval. A festa carnavalesca (carnaval) surgiu a partir da implantação, no século XI, da Semana Santa pela Igreja Católica, sucedida por quarenta dias de jejum, a Quaresma. Esse longo período de privações acabaria por incentivar a reunião de diversas festividades nos dias que antecediam a Quarta-Feira de Cinzas, o primeiro dia da Quaresma. A palavra "Carnaval" está, desse modo, relacionada com a ideia de deleite dos prazeres da carne marcado pela expressão "carnis valles", que, acabou por formar a palavra "Carnaval", sendo que "carnis" em latim significa carne e "valles" significa prazeres. Em geral, o Carnaval tem a duração de três dias, os dias que antecedem a Quarta-Feira de Cinzas. Em contraste com a Quaresma, tempo de penitência e privação, estes dias são chamados "gordos", em especial a terça-feira (Terça-Feira Gorda, também conhecida pelo nome francês Mardi Gras). O termo mardi gras é sinônimo de Carnaval. Pensa-se que terá tido a sua origem na Grécia em meados dos anos 600 a 520 a.C, através da qual os gregos realizavam seus cultos em agradecimento aos deuses. Passou a ser uma comemoração adotada pela Igreja Católica em 590 d.C. antes da Quaresma.

Em 1545, um nobre veneziano e patrono das artes chamado Luigi Cornaro (nome real: Alvise Cornaro), vendo que os excessos da Gula poderiam vir a matá-lo em breve, criou um guia chamado Discorsi della vita sóbria (discursos sobre a vida de temperança), que é considerado o primeiro livro de dieta do mundo. Ainda que o guia demonstrasse métodos práticos de dieta, na época o mesmo fora visto sob uma perspectiva mais religiosa do que médica, pois acreditava-se que Luigi havia dominado a carne e o desejo incontrolável da Gula, o mais paradoxal dos pecados.



A Gula x Puritanismo

"Glutonia". Catedral de Albi em Albi, França  

O puritanismo designa uma concepção da fé cristã desenvolvida na Inglaterra no século XVIII por uma comunidade de protestantes radicais depois da Reforma Protestante. Alexis de Tocqueville Segundo o pensador francês Alexis de Tocqueville, em seu livro A Democracia na América, trata-se tanto de uma teoria política como de uma doutrina religiosa.

O adjetivo "puritano" pode designar tanto o membro deste grupo de calvinistas (nome criado em referência a João Calvino, teólogo cristão francês que teve grande influência na reforma protestante) rigoristas como aquele que é rígido nos costumes, especialmente quanto ao comportamento sexual (pessoa austera, rígida e moralista), que rejeitava tanto a Igreja Romana como o ritualismo e organização episcopal na Igreja Anglicana.

Por volta dos anos 1600, um grupo de imigrantes puritanos europeus migraram para os Estados Unidos, estabelecendo colônias em Plymouth e na baía de Massachusetts, tendo como objetivo “estabelecer o novo reino de deus na Terra” e “derrubar a capela de Satã no novo mundo”, um grupo de cristãos reformado e purgado dos excessos ligados ao catolicismo romano, o qual literalmente odiavam. Na verdade, eles foram forçados a migrarem para a América do Norte devido a conflitos e opressões por parte da igreja anglicana na Europa, sendo que o rei ameaçou “expulsá-los da terra, ou fazer pior”.
E essa nova forma de cristianismo travou uma intensa guerra contra o natal: eles acreditavam que as festividades natalinas resultavam no pecado da Gula. Tanto que influenciaram o Tribunal Geral de Massachussets, e em 1659 o feriado fora oficialmente banido. Quem violasse essa lei, era multado em 5 xelim (uma unidade monetária que está ou esteve em uso em muitos países (particularmente ex-colônias britânicas)). E assim, o natal permaneceu na ilegalidade até o ano de 1681.
Como estudavam a fundo a bíblia mas a não interpretavam racionalmente, e sim a levavam ao pé da letra, não havia registros de que o natal era uma data comemorativa na bíblia, então decidiram impôr suas próprias leis e impuseram o fim das festividades.



A Proibição contra o Império da Gula no Século XX e seu Poder no Mundo do Crime 


Marcha organizada por nova-iorquinos em 14 de Março de 1932. Neste mesmo ano, a Lei Seca foi revogada após 11 anos de sua imposição. 


No início do século XX, a Gula torna-se um problema social, pois acreditavam que o hábito de se embebedar era o pior aspecto do pecado da Gula. Com isso, emergiu um movimento chamado Lei Seca, ou Nobre Experimento, ou ainda Movimento da Temperança.

Movimento esse liderado por mulheres e esposas insatisfeitas com maridos beberrões aliadas a líderes religiosos protestantes, que simplesmente consideravam o ato de beber um pecado; sua “missão” era acabar com o pecado da Gula tornando proibida a venda e o consumo de álcool. Afinal, como os mesmos diziam, estavam “protegendo as famílias americanas dos efeitos nocivos do álcool”.
Além disso, ainda contavam com o apoio do governo, que visava mais dedicação e produtividade dos trabalhadores, evitando que funcionários aparecessem bêbados ou de ressaca no local de trabalho.
Na história dos Estados Unidos, a Lei Seca caracteriza o período de 1920 a 1933 durante o qual a fabricação, transporte e venda de bebidas alcoólicas para consumo foram banidas nacionalmente, lei essa que foi estabelecida na 18ª emenda da Constituição norte-americana.

Em um primeiro momento, houve um grande apoio à medida, mas, depois, o comércio e consumo ilegal de bebidas se tornaram corriqueiros, com o governo fazendo vistas grossas. Traficantes e comerciantes ilegais, como o famigerado gangster ítalo-americano Alphonse Gabriel “Scarface” Capone, ou simplesmente Al Capone, em Chicago, montaram grandes esquemas que lucravam com o consumo ilegal. Ao invés de acabar com o consumo de álcool e com os problemas sociais, entre outros problemas, a lei gerou a desmoralização das autoridades, o aumento da corrupção, explosões da criminalidade em diversos estados e o enriquecimento das máfias que dominavam o contrabando de bebidas alcoólicas. O ponto de encontro das pessoas que queriam beber eram bares clandestinos localizados no subterrâneo, com o objetivo de não chamar atenção.

Argumentando que a legalização das bebidas geraria mais empregos, elevaria a economia e aumentaria a arrecadação de impostos, os opositores do então presidente norte-americano Franklin Roosevelt o convenceram a pedir ao Congresso dos Estados Unidos que legalizasse a cerveja. Com isso, em 1933 é revogada a emenda constitucional da lei seca.



Al Capone e a Ascensão do Lucrativo Império do Contrabando de Bebidas

"Alphonse Gabriel "Al" Capone" ao ser preso por sonegação de impostos em 1931. 



Alphonse Gabriel "Al" Capone (Nova Iorque, 17 de janeiro de 1899 — Palm Beach, 25 de janeiro de 1947) foi um gângster ítalo-americano que liderou um grupo criminoso dedicado ao contrabando e venda de bebidas entre outras atividades ilegais, durante a Lei Seca que vigorou nos Estados Unidos nas décadas de 20 e 30. Seu apelido, “Scarface”, pseudônimo eternizado no clássico filme homônimo protagonizado por Al Pacino (embora o filme não seja baseado na vida do gangster) originou-se quando ele se tornou garçom e guarda-costas no Harvad Inn, quartel-general do gangster Frank Yale, em Coney Island. Um gangster chamado Frank Galluccio cortou seu rosto como vingança pelas liberdades que ele tomava com sua irmã; isso ocorreu no verão de 1917, enquanto trabalhava no Harvard Inn.

Estima-se que aproximadamente 10 mil pessoas tenham morrido por conta das bebidas estragadas vendidas pelo mafioso. Além de haver exterminado centenas de inimigos durante seu reinado de sangue e morte no mundo do crime, em 4 anos, junto à sua organização criminosa, expandiu seus negócios para fora de Chicago, a qual subornava: promotores, advogados, juízes e controlava informantes da polícia, pontos de apostas, casas de jogos, bordéis, bancas de apostas em corridas de cavalos, clubes noturnos, casas de bebidas, etc. Chegou a ser eleito pela revista Time um dos homens mais importantes do ano em 1930, ao lado de Albert Einstein e Mahatma Ghandi. Estima-se que sua renda anual era de 100 milhões de dólares sem pagar um centavo de imposto de renda.

A queda de Al Capone e seu império veio quando um obstinado detetive chamado Eliot Ness foi escolhido para liderar uma força-tarefa empenhada em obter provas de evasão de imposto de renda do gangster, e processá-lo por violações da lei seca. Após seis meses de operação em cervejarias clandestinas usando escutas clandestinas e várias tentativas de suborno e de assassinato dos homens de Al Capone contra Eliot Ness e seus homens, em 1931, Al Capone foi condenado por evasão fiscal e violação da lei seca com onze anos de prisão. O filme “Os Intocáveis”, dirigido por Brian de Palma, retrata como Eliot Ness e seus homens derrubaram o império criminoso de Al Capone, contando com atores como: Kevin Costner (detetive Eliot Ness), Robert de Niro (Al Capone), Sean Connery (detetive Jim Malone) e Andy Garcia.

Al Capone cumpriu pena na Ilha de Alcatraz, também conhecida como “A Rocha” ou ainda “A Ilha do Diabo”, na época considerada a prisão mais segura dos Estados Unidos e à prova de fugas por estar situada em uma ilha (só existe um registro de fuga de três prisioneiros em uma noite, os quais jamais foram capturados, e menos de um ano após essa fuga, a prisão foi desativada). Sua pena foi revisada em 1939, em decorrência de seu estado de saúde; ele tinha sífilis e apresentava traços de distúrbios mentais e morreu dessa doença em 1947 em sua mansão.



Peter Binsfeld e a Associação dos Demônios com os Pecados


Peter Binsfeld (também chamado de Peter Binsfield, em latim: Petrus Binsfeldius), foi um demonologista, teólogo e padre jesuíta Medieval. Viveu em Trier, na Alemanha, e ali morrera da peste em 1598. Ele estava envolvido nas caças às bruxas do seu tempo e escreveu "A Confissão de Feiticeiros e Bruxas", que discutiu as confissões de supostas bruxas, e argumentou que a tortura não afetou a veracidade das confissões.

Em 1589, Peter Binsfeld comparou cada um dos sete pecados capitais com um ou mais Demônios:

Gula: Belzebu
Luxúria: Asmodeus
Ganância: Mammon
Preguiça: Belfegor/Pazuzu
Ira: Satanás/Azazel/Amon
Inveja: Leviatã
Orgulho: Lúcifer

Ele também teorizou que outros demônios poderiam invocar o pecado. Por exemplo, Lilith e sua prole, o Incubus e Sucubus, invocam a luxúria. A Sucubus dorme com os homens, a fim de impregnar a si mesmo, para que possa suportar mais demônios. O Íncubus dormiria com mulheres para levá-las a pecar.

Ou seja, Peter Binsfeld nada mais fez do que seguir a velha premissa cristã, dando personificações e rostos aos pecados, e dando a entender que “a culpa é do Diabo”, ou “O Diabo me fez fazer isso”.


Conclusão



Para a maioria, a antiga tradição de reprimir os desejos de saborear as melhores refeições e as melhores bebidas é um conceito quase morto em sua totalidade. Gourmets, chefs, degustadores e os atuais fabricantes de cervejas e outras bebidas alcoólicas artesanais possuem grande reconhecimento e posições de respeito dentro do mercado de trabalho. O medo de um suposto “inferno” lodoso, fétido, pútrido e tomado por enxofre, lamentos de “pecadores” desencarnados e chamas eternas é substituído perante mesas com os mais diversificados e saborosos pratos e bebidas que antes eram vistas como “servidas por Satã”; e a visão ortodoxa da religião cristã para evitar os males do pecado da Gula é substituído por técnicas como exercícios físicos e os mais variados métodos de tratamentos médicos e experimentos científicos.

Enfim, finalizo com um fragmento em relação não só ao “pecado” da Gula, mas às tentações em geral:

“Perante cada desejo, é necessário fazer a pergunta: qual a vantagem de não o satisfazer?”*Epicuro 

*Epicuro de Samos (341 a.c., Samos — 271 ou 270 a.c., Atenas) foi um filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido e numerosos centros epicuristas que se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma, onde Lucrécio foi seu maior divulgador. O propósito da filosofia para Epicuro era atingir a felicidade, estado caracterizado pela aponia, a ausência de dor (física) e ataraxia ou imperturbabilidade da alma. Ele buscou na natureza as balizas para o seu pensamento: o homem, a exemplo dos animais, busca afastar-se da dor e aproximar-se do prazer. Estas referências seriam as melhores maneiras de medir o que é bom ou ruim.) (Wikipedia)


"Boca do Inferno". Afresco da igreja de "Sant'Eusebio e Vittore a Peglio". Lago de Como, Itália.


Texto por: Éric Tormentvm Aeternvm XVI/XIII (Nigrvm K. Kyaho Tormentvm XIII)

Fonte consultada para diferentes partes do texto: Wikipedia

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