ODE AO PECADO: LUXÚRIA
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Arte de Alessandro Biffignandi |
"Resisto a tudo, menos à Tentação." Autor Anônimo.
A história do surgimento do que conhecemos atualmente como os sete pecados capitais (ou mortais) não teve sua origem dentro dos ditames da bíblia como muitos acreditam. Estes nasceram, na verdade, a partir de interesses éticos da igreja ortodoxa. Os primeiros pensamentos a darem origem aos sete pecados como os conhecemos atualmente teriam tido início no ano de 375 a.c., quando um monge cristão fugiu das tentações da cidade romana de Constantinopla e se enclausurou num monastério no deserto egípcio. Seu nome seria Evagrivs Ponticvs (Evágrio do Ponto), que durante seu período de isolamento, começou a catalogar seus pensamentos no monastério. Evagrivs então começou a listar as tentações e, no final, criou uma lista que continha, em sua ótica, os oito pecados mais aterradores, estes sendo: Luxúria, Gula, Preguiça, Avareza, Ira, Soberba, Vaidade, e Tristeza.
Segundo a História, o pecado da Luxúria seria aquele com o qual o monge travava sua lutas mais árduas, pois antes de seu isolamento no monastério, o monge teria mantido relações sexuais com a esposa de um dignatário romano. E, mesmo os monges basicamente não tendo quaisquer contatos com mulheres, a tentação sexual estava sempre presentes em suas vidas por conta da repressão celibatária a estes sentimentos. Então, para dispersar a tentação de suas mentes, os monges, além das habituais orações e jejuns, geralmente queimavam os dedos em suas lamparinas para que pensassem na dor ao invés de ceder ao desejo tentador. Dentro dos ditames bíblicos, o pecado da luxúria é frequentemente descrito de forma pejorativa com referências ao adultério e total descontrole perante os prazeres da carne. Em contraparte a isto, no mundo antigo, a Luxúria é venerada, como na cultura Hindu, cujas artes de vários de seus templos exibem inúmeras formas de posições sexuais, por exemplo, retiradas dos famigerados escritos eróticos chamados Kama Sutra. Neste manuscrito estão detalhados mais de 60 tipos de práticas sexuais em ilustrações e destacam a prática da prostituição, do sexo grupal, do sado-masoquismo e demais práticas de lascívia carnal.
E não haveria como não mencionar também a intensa presencia da Luxúria no Império Greco-Romano. Na Antiga Grécia, fronteiras e estradas eram demarcadas com várias colunas “decoradas” com pênis que recebiam o nome de “herma”, em homenagem a Hermes, o deus grego da fertilidade, dos rebanhos, da magia, da divinação, estradas e viagens (Mercúrio na Mitologia Romana, e através da influência egípcia, sofreu um sincretismo também com Toth, criando-se o personagem de Hermes Trimegistro). As festividades em homenagem ao deus das festas e do vinho Dionísio (Baco para os romanos) eram celebradas com selvagens orgias sexuais em florestas, sendo que a palavra grega “orgia” vem a significar “ritual secreto”. Mas a pecado lascivo encontrara realmente seu ápice no Império Romano, deixando sua forte influência principalmente na arte, como na fúnebre cidade de Pompéia, uma riquíssima fonte da arte luxuriosa nas paredes de casas e templos fazendo referências a prostíbulos e preços variados dentro dos mesmos. O Império Romano literalmente respirava obscenidade carnal impura e lasciva na quintessência pecaminosa carnal, e que encontrou seu auge no império de Calígula (Gaius Julius Caesar Augustus Germanicus), por volta de 37 e.v. Conta-se que Calígula exigia sexo de todas as mulheres mais atraentes de Roma, entre as quais incluía-se suas próprias irmãs. Além de ter também tornado parte de seu palácio em um bordel no qual forçava mulheres casadas do reino a se prostituirem apenas para satisfazer seus impetuosos desejos. Em 24 de janeiro de 41, Calígula foi assassinado pelos executores de uma conspiração integrada por pretorianos e senadores, liderados por Cássio Querea. É mencionado também que sua morte prematura (com 28 anos) seria um castigo dos deuses pelo abuso do poder da Luxúria por parte do Imperador.
No Império Romano a Luxúria tomou vida sob a forma da deusa da sexualidade Vênus (Afrodite para os gregos). Enquanto o panteão de deuses greco-romanos procriava naturalmente através do ato sexual (como está representado em inúmeras obras de Arte retratando cópulas e orgias entre os deuses), em contradição surgia na mesma época o cristianismo, que pregava o monoteísmo e trazia no livro do deuteronômio a lista dos dez mandamentos de servidão atribuídos a Moisés. Há em especial dois mandamentos que condenam a Luxúria: não cometer adultério e não cobiçar a mulher do próximo. Segundo consta, jesus teria enfatizado que o próprio fato de simplesmente olhar uma mulher com desejo e, neste caso, a pena seria a danação eterna nos confins do Inferno, embora na própria bíblia não haja uma descrição deste mencionado Inferno de perpétuas danações, agonias e torturas... Tal concepção de Inferno tornou-se realmente conhecida e aceita comumente como “verdadeira” através da obra “A Divina Comédia”, escrita por volta de 1.320 a.c. por Dante Alighieri. Em sua obra, os fornicadores são condenados ao Segundo Círculo Infernal, no qual os condenados são atirados pelos ares incessantemente por ventos tempestuosos, simbolizando o poder tempestuoso da Luxúria; logo após, ele passa juntamente com Virgílio pelo purgatório, onde as almas condenadas queimam em flamas incandescentes, simbolizando a chama sexual incontrolável.
"Orgia dos Vampiros". Les Edwards
E também em contradição ao próprio cristianismo, dentro de seu meio se destaca um grupo peculiar de cristãos com práticas tidas como hereges pela igreja ortodoxa. Por volta de 325 e.v., um pequeno grupo de cristãos se reunia para celebrar a nudez em forma de sacramento: iniciava-se primeiro o ritual do desnudamento, logo após a unção em grupo, seguidos do próprio ato sexual entre o sacerdote e a sacerdotisa. A seita era chamada de “cartocrática”, parte do que é mais comumente conhecido como cristianismo gnóstico (da palavra grega “gnosis” que significa conhecimento). Um bispo chamado Epifânio do século IV detalhou sobre tais missas orgíacas: “eles entram em um frenesi entre si, sujam suas mãos com secreções e rezam totalmente nus”. Com os boatos sobre consumação de secreções e rituais de orgias circundando os meandros da igreja ortodoxa, a mesma reagiu prontamente: todos os escritos gnósticos foram queimados, os grupos gnósticos se dispersaram e tudo que restou é o que se sabe através dos escritos de cristãos ortodoxos anti-gnósticos.
"Ex Libris". Frantisek Kobliha, 1924
Nesta mesma época, quando o Império Romano ruiu dando lugar a Idade das Trevas que suprimiu todas as formas de expressão voltadas a Luxúria, que Evagrivs Ponticvs desenvolveu sua lista de pecados, que continham originalmente oito tipos de tentações, mas tal lista apenas era conhecida pelos monges do mosteiro. E foi somente por volta do ano 590 a.c. que a lista passou de oito para os sete pecados capitais como conhecemos hoje, através do reformador papa Gregório, que retirou a vaidade e a tristeza da lista original e adicionou a inveja, ficando a lista desta forma: Gula, Inveja, Ira, Soberba, Avareza, Luxúria e Preguiça, divulgando-os assim ao mundo cristão da época. Foi durante a sua reforma que a igreja ortodoxa travou uma intensa batalha contra o pecado da Luxúria: se até aquela época era uma opção aos padres poderem se casar, agora todos teriam de ser celibatários. Na verdade, isso nada mais foi que um estratagema para evitar que as propriedades da igreja passassem para os filhos de padres e bispos. O sentimento anti-hedonista predominava e o sexo somente servia para a procriação. Também para se contraporem aos pecados, criaram a lista das 'sete virtudes celestiais', sendo estas: temperança (o oposto da Gula), castidade (o oposto da Luxúria), caridade (o oposto da Ganância), diligência (o oposto da Preguiça), paciência (o oposto da Ira), humildade (o oposto da Soberba), generosidade (o oposto da Inveja). Tal posicionamento anti-hedonista (até mesmo em casamentos) perduraria por mais de 1.000 anos, em rechaço a atos sexuais perfeitamente naturais em todas as suas formas, fosse o sexo entre duas pessoas, grupais, masturbação, artes reproduzindo nudez e sodomia, etc ...
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Norman Lindsay - "Creta" - 1940 |
Foi nessa época também que os pecados foram demonizados: segundo os “heregiólogos” da época, cada pecado seria ligado a um Demônio em particular. No caso da Luxúria, esta estaria ligada ao famigerado Demônio: Asmodeus, ou Aschmeday em hebraico (“O Destruidor”, ou “O Senhor que Julga”), derivada da negra deidade persa “Aeshma Daeva”. Uma de suas primeiras aparições é mencionada no talmud no livro de Tobias, relatando que este Demônio toma posse do corpo e da alma de uma linda e aparentemente frágil donzela chamada Sara e que, através dela, a forçou a matar sete de seus pretendentes. A bíblia também aponta ainda a relação de Salomão com Milcom, Moloch, Astaroth e o próprio Asmodeus que, segundo alguns grimórios, o teriam ajudado na construção do templo de israel, mas deste tópico trataremos em outro texto... Segundo grimórios da época como o próprio “As Clavículas de Salomão”, este soberbo Príncipe Infernal podia ser evocado e forçado para realizar os mais diversos tipos de desejos e ritos sexuais e realizar atos sexuais com sedutoras Sucubus, enquanto estas sugavam a energia vital de sua vítima humana durante a cópula, até deixá-la totalmente exaurida.
Nessa época também era muito comum a prática do exorcismo sobre pessoas que estivessem supostamente possuídas por entidades demoníacas, em especial aos demônios relacionadas com os sete pecados capitais. Então, para identificar uma pessoa possuída, alguns sinais de possessão foram instituídos, como: falam em linguagem estranha e/ou desconhecida, habilidade e forças sobrenaturais, aversão a tudo que seja considerado “sagrado”, blasfêmias, heresias e sacrilégios em abundância, entre outros. Além disso, em aproximadamente no ano de 1.213 e.v., a igreja agregou outro detalhe em relação ao pecado: nascia aí o ato de confissão. Era exigida por parte da igreja que seus fiéis se apresentam pelo menos uma vez ao ano para confessar seus pecados nos mínimos detalhes, orientados a usar como base a lista dos sete pecados capitais. Ainda assim, os sete pecados tornaram-se parte da cultura popular por toda a Europa, sendo esculpidos em templos, desenhados em altares, pintados em bíblias, e ilustravam poesias e epopéias...
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"O Pecado perseguido pela Morte". Henry Fuseli |
Já no século XVI, houve a cisão que viera para abalar o mundo cristão: era o surgimento da reforma protestante, dividindo o cristianismo entre católicos e protestantes. Os protestantes eram contrários ao ato de confissão, mas mantinham uma aversão particular pelo pecado da Luxúria. Durante esse tempo, uma seita de cristãos chamados “os puritanos”, por terem como objetivo criar uma forma de religião mais pura, fugiram da efervescente e hedonista Europa para as terras da América do Norte com o propósito de criar sua própria colônia com base na sua forma de religiosidade puritana; ou seja, um lugar onde o pecado não seria de forma alguma tolerado. Por volta de 1.620 e.v. , os puritanos chegaram a Plymouth em Massachussets; e em seu rígido código de leis, o pecado da Luxúria ocupava o lugar de destaque, a figura central. Em suas colônias, cometer o pecado da Luxúria levava a graves punições: mulheres, por exemplo, eram obrigadas a carregar até o dia de sua morte a letra “A” pendurada no pescoço. Já com puritanos flagrados em atividades fora do casamento enfrentavam o açoitamento e humilhação pública; já no caso de puritanos flagrados em meio a atos de sodomia e zoofilia, a punição era a morte. Aqui se encontra claramente a forma de rechaço à Luxúria em sua forma mais vergonhosa, misógina, repugnante e hipócrita em meio a tantos outros grupos que tenham em comum tais “ideais” voltados a totalitária anti-natureza do ser. Ainda assim, mesmo com todas as formas de repressões que tentam suprimir este delicioso pecado, o mesmo através das Eras jamais fora vencido ou suprimido. Ainda que por volta do ano de 1.800, marcado pelo era vitoriana na qual predominava o puritanismo e repressão sexual. As leituras dessa época tratavam a Luxúria como algo insano e anormal. Práticas sexuais como o adultério, a prostituição e o sexo grupal permaneceram no anônimato. Tal repressão somente foi sendo eliminada com a virada do século XX, que foi como o renascimento triunfal para a ascensão do império lascivo juntamento ao avanço tecnológico e a urbanização. Dançarinas de cabarés, por exemplo, trouxeram uma nova imagem mais sexy, liberal e lasciva da mulher da virada do século.
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"Luxúria". Obra de Gail Potocki para sua série "Os Sete Pecados Mortais" |
A pílula anti-concepcional nos anos 50 também veio para revolucionar o mundo da luxúria. Também nos anos 60 movimentos subversivos e contra-culturais trouxeram uma nova era de revolução liberal para um mundo retrógado. Claro que esta revolução contra-cultural, que também envolvia sexo, drogas e Rock’n Roll se espalhava pelo mundo, visto que aqui no Brasil a ditadura e o governo despótico estavam a oprimir quaisquer movimentos subversivos e revolucionários que viessem a se erguer. Virtude e Vício se misturavam e se confundiam em meio a uma revolução liberal que tomava o mundo de assalto nos anos 60. E assim permanece até os dias atuais o império da Luxúria inabalável e cada vez mais sedutor, quebrando tabus retrógados provocados por falsos moralismos impostos pela morta era monoteísta.
"Luxúria". Jacques Callots
Texto por: Éric Tormentvm Aeternvm XVI/XIII (Nigrvm K. Kyaho Tormentvm XIII). Escrito originalmente em 12 de Março de 2012
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